





Prefácio do Paradoxo 12
Este livro tem parte com o sagrado. Fraturas expostas e iluminações em cada fissura. Uma noite alonga e se espraia até o horizonte que só pede futuro. Carlile, haitiano e brasileiro, ecoa o melhor resgate da prosa latino-americana, sua ambiência e pungência, lembrando o mexicano Juan Rulfo e nosso Graciliano Ramos. Prosa sem concessões. Multivocal, panorâmica, ressalve-se logo um soco no estômago. Desde que me caíram às mãos o original, estou num alumbramento de atordoo.
´´Mesmo no estado de espírito mais otimista, não consigo entender. Quando a terra treme, nada pode silenciá-la, mas nós permanecemos em silêncio. A morte, nesse caso, não fala, ela nos surpreende.´´
Denúncia social, mais denúncia sistêmica, um apontar de dedos em tudo que em condições normais seguiria sem a perspectiva do seu absurdo. Tudo retorna ao estado larvar, a terra expõem as vísceras do cataclismo que era o dia a dia sem indignação. Não serei o teórico dissecando uma obra literária, li para me purificar e cheguei a um fulcro do humano pleno.
Hermenêutica da resiliência.
´´Estamos dormindo sob as estrelas há mais de três meses. A chuva ainda não caiu, mas ela nos ameaça de vez em quando. Até agora, o céu está mostrando sua clemência. A Terra tremeu, e parece que estamos orando com mais sinceridade… De volta a mim , que cuido do mar.´´
O caos faz brotar uma gênese possível e reparadora. A devastação sempre traz a mítica do sacrifício. Hecatombe não é o sacrifício de cem bois? Nas cosmogonias das Áfricas e do rico caldeirão haitiano não deve ser diferente a apreensão de Shiva em todos ciclos. Sensação de uma grande deusa entrecortando cada camada de percepção atônita todo antes soterrado. Mito sobre mito, Carlile nos pega pela mão ressignificando cada outrora lugar-comum até a claridade do reencantamento.
´´O terremoto quebrou o relógio e as regras do jogo, pois destruiu tudo no espaço de um minuto.´´
Não me desculpo por extrair poesia de cada frase rutilante como um raio num céu sereno, é também da ordem da ´poiesis´ mais radical a tessitura dessa obra que nasce prima, primeva, necessária de rizomas arborescendo insights/despertares poderosos. Eu li Carlile como quem amanhece. Faz tempo não se convocava tanto de um leitor. O sismo metaforiza o tremor e temor em como entendemos um mundo de exclusão exigindo insurgências cognitivas diante da instauração de uma oligarquia global avassaladora. A força simbólica de cada luto. O reencontro com a família, o reencontro com a irmã nos escombros, que ascensão ao cerne em cada frase que irrompe magma composto! Sublime! Mas na substância imantada de cada instante. Nasce-me um clássico particular a ser relido sempre clássico da transmodernidade. Transido me refaço. Descubra e compartilhe esse tratado de resistência.
[ Flávio Viegas Amoreira
Escritor, poeta e crítico literário ]
flavioamoreira@uol.com.br

